Reportagem Veja Rio 24 julho 2002

Hotel para cães: Alain Rohr e Ana Clara são os anfitriões do canil

Um belo dia de cão

A paixão dos donos faz com que o
mercado de produtos
e serviços para
os animais mobilize bilhões de reais

Fátima Sá e Fábio Brisolla



"Flora Maria" era um poço de problemas. Desconfiada, não gostava de carinho. Chorava sem parar cada vez que ficava só. Mal tocava na comida. A família tentou de tudo. Até recorrer à psicóloga Cláudia Pizzolatto. Algumas sessões depois, o diagnóstico foi preciso: a origem dos problemas estava em "traumas de infância". Até aí, tudo bem. Não fosse Flora Maria uma cadela da raça west terrier, aquela que ficou famosa como símbolo de um site, e Cláudia, uma psicóloga de cães. Flora Maria, soube-se depois, fora vítima de maus-tratos na casa do primeiro dono. Não confiava na nova família. Atenção redobrada e cuidados especiais devolveram a paz ao animal. O tratamento não saiu barato. Cláudia, que já atendeu mais de 1.000 animais, cobra 70 reais a hora. Excentricidade para alguns, frescura para outros, a psicologia canina é apenas um dos muitos serviços cada vez mais requisitados por donos de animais. Além do auxílio de terapeutas, os cães contam com especialistas para tudo. E a área veterinária é uma parcela de um mercado que não pára de crescer. Segundo a Associação Brasileira do Mercado Animal (ABMA), os produtos para bichos de pequeno porte já movimentam 14 bilhões de reais por ano no país, 4 bilhões no Rio de Janeiro. Uma quantia que inclui desde simples rações até pet shops com status de butique, canis com visual de spa, iguarias dignas de delicatessen. Dos 27 milhões de cães que há em todo o território nacional, 2,2 milhões vivem em terras fluminenses, segundo estimativa da Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos para Animais (Anfal). Só na cidade do Rio existe quase 1 milhão. A paixão do carioca pelo melhor amigo do homem fica clara nas estatísticas. Um em cada seis moradores do Rio tem cachorro.

"O animal ajuda a socializar a criança, faz companhia para quem mora só. E há cada vez mais estímulo para que as pessoas tenham bichos. Com isso, o mercado explodiu", argumenta a titular da secretaria municipal de Defesa dos Animais, Maria Lúcia Frota. A secretaria, aliás, é fruto desse boom. Foi criada no ano passado. Mas a prefeitura se rendeu aos apelos da bicharada muito antes. Em novembro de 2000, a Lagoa ganhou um ParCão, uma área delimitada para a recreação dos cachorros, perto do Parque da Catacumba. Neste ano foi a vez de Ipanema embarcar na onda. Em março, a Praça Nossa Senhora da Paz reservou espaço para esses animais. O Jardim de Alah, no Leblon, deve ter o seu futuramente. A animação da cidade é tanta que há até festa junina para eles. No domingo (28), a cachorrada tijucana vai reunir-se, vestida de caipira, num grande arraiá no pet shop Belay, na Rua Afonso Pena. Com direito a correio do amor. O boom da bicharada provoca risos, alegra famílias, agita o mercado. Mas tem seu lado perverso. O problema, pondera Maria Lúcia, é que a empolgação faz muita gente comprar o cachorro e se arrepender depois. "Pelos mais diversos motivos, o dono acaba se desfazendo do animal. Quanto mais gente compra, mais gente abandona", lamenta a secretária, que virou uma espécie de mãe adotiva da bicharada sem lar. Tem três cães e dezesseis gatos. Todos recolhidos da rua. "O bicho é um compromisso para a vida toda, e é preciso que as pessoas tenham isso em mente quando resolvem adquirir um animal", diz.

Mirian Monteiro/Strana
Vera Lúcia: 8 000 reais por mês para manter os dois cães da raça pit bull

A paixão de Maria Lúcia pelos animais, é verdade, não poupa exageros. Mas a secretária está longe de ser caso raro. Vera Lúcia Ryder, por exemplo, tem dois cães e espera a chegada de um terceiro. Quem pensa que o excesso está no número de animais erra feio. Os cachorros de Vera levam uma vida de nababo. Em seu amplo apartamento, em Ipanema, os irmãos "Medéia" e "Hermano Satanus" ocupam um quarto. Só deles. Ali, dispõem de ar condicionado, televisão, berço, sofá, uma infinidade de brinquedos. As paredes do quarto são decoradas com pintura de cães, as mesas cobertas de porta-retratos. Com foto dos cachorros, naturalmente. Num canto, uma cama chama a atenção. "Não é para eles", Vera apressa-se em dizer. Mas para Carlinhos, o "babá" da dupla. Para sustentar os mimos deles, Vera gasta uma fábula. Cerca de 8.000 reais por mês. "Se você decide ter um animal, precisa tratá-lo bem", justifica. "Afinal, são umas gracinhas", derrama-se. O elogio soa estranho ao deparar com os cães de Vera. Medéia e Satanus são dois pit bulls, a raça que saiu dos canis para as páginas policiais depois de sucessivos ataques violentos na cidade. Os dois ainda são filhotes. E Vera nem liga. É apaixonada por eles. Às vezes, permite, até, que comam à mesa com ela.

Bruno Veiga/Strana
Bruno Chateaubriand: o cãozinho chow-chow é "como um filho"


Mas nem tudo é alegria quando se decide adotar um animal. Vera, por exemplo, anda penalizada com a situação de Medéia. Dia desses, a cadela fraturou uma pata. Foi parar no ortopedista. Operada, colocou pinos e, agora, inicia o tratamento com um fisioterapeuta. A demanda por especialistas chegou a tal ponto na medicina veterinária que a variedade de profissionais se compara à existente em qualquer catálogo de planos de saúde. Em Botafogo, um centro de hemodiálise e diagnóstico para animais foi inaugurado em janeiro. "A insuficiência renal é uma doença que precisa ser acompanhada por vários profissionais. Por isso, temos cardiologista, endocrinologista e neurologista", enumera o médico veterinário Márcio Bernstein, um dos sócios do centro. No local, há também equipamentos de ultra-som e raios X. Mas o serviço mais procurado é a acupuntura, especialidade de Bernstein. "O número de doenças degenerativas em animais é muito grande, e a medicina chinesa vem somar-se à alopática", diz o médico. O centro recebe dez cães por dia para o tratamento com agulhas.

"Antigamente, especialização era ser veterinário de grandes ou de pequenos animais. Hoje, há cardiologistas, homeopatas, neurologistas", conta Jorge Pereira, oftalmologista de animais e presidente da ABMA. Jorge mantém um consultório no Rio e outro em Teresópolis. Opera catarata com ultra-som e implanta cristalinos artificiais. Cobra 1.800 reais por olho, e 3.000 reais se operar os dois olhos do cão. "Os leigos muitas vezes consideram o tratamento com especialistas um luxo desnecessário. Mas o que promovemos é a saúde, e saúde não é luxo", frisa a veterinária Cláudia Youle, 33 anos, sócia da Dentalvet, clínica na Barra especializada em tratamento odontológico. Segundo a médica, o principal problema nos dentes dos cães costuma ser o acúmulo de placa bacteriana. Há os casos mais complexos. "Alguns nascem com os dentes mal posicionados, o que causa ferimento na boca, e a forma de tratar é colocando um aparelho fixo", diz Cláudia.

Bruno Veiga/Strana
Dentes caninos: Cláudia Youle abriu uma clínica de tratamento odontológico

Outra doença que aflige o universo canino é o stress da vida urbana. Passar a maior parte do dia preso dentro de um apartamento afeta o animal. Por isso, Daniela Prado, outra especialista em comportamento de cachorro, montou um spa no canil Monte Olivette, em Guapimirim, a 85 quilômetros do Rio. "Elaboramos programas voltados para a perda de peso e para o trabalho muscular", conta Daniela. O spa surgiu quando ela começou a avaliar o estado físico dos cães que se hospedavam por lá. Certa vez, um teckel (o da propaganda da Cofap) chegou ao canil e brincou como nunca. Correu como um desvairado o dia inteiro, pulou canteiros, enturmou-se com outros cães. No dia seguinte, o animal não se movia. Só ficava deitado. "Ele ficou exausto porque era um cachorro de apartamento. Começamos a reparar que muitos estavam obesos e sem preparo físico algum", diz. Daniela elaborou então um programa de atividades, como natação em cachoeira, das 8 às 18h30, e inaugurou o spa. A diária custa 20 reais, com a opção de buscar o animal em casa.

A mesma filosofia foi adotada pelo economista Alain Rohr, 48 anos, que deixou o mercado financeiro para investir em seu "hotel de cães", como costuma definir o canil Bon Voyage. O local oferece aos hóspedes piscina, vasto gramado e dependências com ar-condicionado para a adaptação de cães vindos do exterior. "O objetivo é realmente distrair, brincar, socializar, dar ao hóspede o que não costuma ter em um apartamento", explica Alain. Há casos em que ocorre o contrário. "Alguns cães são muito ligados ao proprietário, querem estar perto de gente. Esses ficam alojados em minha casa." A residência de Alain, localizada no mesmo terreno do canil, chega a ter dez cães, de tamanhos variados, hospedados por lá. A diária custa 20 reais para os clientes menores e 25 reais para os grandes. O canil fica em Jacarepaguá, mas uma van importada com ar-condicionado busca a cachorrada em casa.

Dilmar Cavalher/Strana
Agulhas: Márcio, veterinário, especializou-se em acupuntura


O negócio é bom mesmo. Boa parte dos cães cariocas toma banho e corta o pêlo em pet shop. Pet shop, não. As lojas para animais estão cada vez mais parecidas com butiques. "Dezoito anos atrás, quando começamos, com uma loja no Humaitá, só havia ração, algumas coleiras e ossos", lembra José Raimundo Pires, dono da Pet Place, em Ipanema. "Hoje, só de xampu há uns sessenta. Tudo o que existe para seres humanos já se pode encontrar para animais", diz. Não é modo de falar. Se o cão é sofisticado, pode comer patê de pato. Importado, claro. Se gosta de alimentos naturais, há biscoitos de fibra. Se faz a linha gorducho, ração light. "Existem até produtos específicos para cães com doenças renais, problemas de calcificação, males do coração", lembra o secretário executivo da Anfal, João Pior. Atualmente, estima João, 35% dos cães que têm dono só comem ração. Caso do peludíssimo chow-chow caramelo do socialite Bruno Chateaubriand. Apesar do nome, "Beluga", em homenagem ao caviar que o dono adora, o chow-chow não come nada que não seja específico para cães. "É um cachorro que exige muito cuidado", observa Bruno. Cuidados que não faltam. Beluga só bebe água mineral. "É como um filho", completa ele.

O apelo do mercado animal é tanto que até a tradicional Farmácia Granado criou sua linha de xampus, condicionadores e sabonetes para cachorros. "O cão saiu do jardim para a cama do dono. E, claro, passou a gozar dos mesmos cuidados", explica Luiz Pereira, proprietário da Pet from Ipanema, com cinco lojas na cidade e duas fora do Rio. É lá, por exemplo, que cães sofisticados podem encontrar coleiras de cristais Swarovski, luxo que não sai por menos de 279 reais (coleira com guia). Glamour à parte, um cliente de pet shop gasta, em média, de 100 a 200 reais mensalmente na loja. Alguns muito mais, naturalmente. Vera, a dona dos pit bulls, desembolsa até 2.000 reais num único mês. Não resiste às novidades, que, aliás, não param de chegar (veja quadro). De olho nessa procura, a ABMA promove, de 8 a 11 de agosto, no Riocentro, a II Conferência Sul-Americana de Medicina Veterinária. E, com ela, claro, a Rio Pet-Vet Trade Show, exposição exclusivamente de artigos para cães. As últimas novidades do setor estarão por lá, até abarrotar as pet shops e, depois, a casa dos donos. Nem tudo emplaca, claro. À medida que o mercado se sofistica, aumenta também a exigência dos donos. Antes, banho em pet shop era um luxo. Hoje, é básico.

Já há inclusive quem prefira cuidar de tudo em casa. Foi assim que João Alt virou "personal dog stylist". Acostumado a embelezar cães que participam de exposições e concursos, João resolveu colocar suas mãos à disposição de clientes comuns. O profissional vai à casa dos donos, dá banho nos cães, tosa, oferece dicas de produtos e serviços. Faz até hidratação no pêlo da bicharada. O preço varia de acordo com o tamanho do cachorro, o tipo de pêlo e o serviço requisitado. O trabalho não sai por menos de 110 reais mensais, com direito a banho uma vez por semana. "Dependendo do cão, gasto até quarenta minutos apenas no banho e só faço tosa com tesoura. É um serviço de qualidade", explica João. Argumentos como esse seduziram gente como a atriz Lavinia Vlasak, dona do scotch terrier "Ataulfo". "Ele só toma banho em casa, com o mesmo profissional que faz a tosa, uma vez por semana", diz ela. Todo cuidado é pouco quando o assunto é o melhor amigo do homem. "De mais a mais, é o único amor que se pode comprar", pondera o veterinário Jorge Pereira.


fonte: http://veja.abril.com.br/vejarj/240702/capa.html